Anjos que choram

 

         



           Ninguém dava um pio na minha casa  enquanto eu não virasse a esquina, com minha panca de pitbull, arreganhando os dentes para a vizinhança apenas para impressionar. E tinha gente que achava uma graça tanta simpatia assim, nem sonhando que aquele pacato trabalhador fazia uma guerra de nervos do portão para dentro, rachando até o teto com meu terrorismo barato. Barato para os outros, porque para minha esposa Dona Nica e os meninos era uma tortura que não tinha preço.

Então esperavam quietinhos, o momento certo para fazer festa. Lucas e André ficavam espiando atrás do muro para dar o grito de liberdade:

-Viva, papai se foi!

Se eu fosse embora para sempre, tudo bem. Assim não precisariam esperar tanto tempo para ligar o rádio, assistir um desenho ou ficar jogando taco com os amiguinhos da rua. Eu poderia esquecer o caminho de volta e virar um homem de bem, daqueles que sentem amor , mas não pensava desta forma .Não compreendia que a violência doméstica deixa marcas na pele da Alma.

Não pense você que é somente a pancadaria, porque a falta de liberdade de expressão amputa o crescimento da criança.

Depois que eu batia o ponto na fábrica de sapatos, dentro da minha casa era só alegria.

Dona Nica dançava com a vassoura, sentindo-se aliviada e muito feliz.

Ela fazia planos enquanto escolhia o feijão, querendo voltar a estudar. Lucas e André aproveitavam para brincar com a molecada e eram felizes até as sete horas da noite, pois quando o relógio da sala começava a ficar pesado, triste e com medo, eles percebiam que um outro tempo estava chegando; tempo de tristeza.

Sem que ninguém lhes falasse nada, desligavam a televisão, recolhiam os brinquedos e com um simples olhar me esperavam trancar o portão.

Silêncio. O peito do pai acelerava o compasso. E lá vinha, como sempre, distribuindo bala para as crianças da rua.

Depois que colocava o cadeado no portão, se transformava em outra pessoa. Encarava a mobília da casa e a própria mulher como que se uma fosse continuação da outra. Eu nunca pensei naqueles meninos famintos de carinho, diálogo e direção. Crianças que enxergavam em mim um caminho escuro; um espelho opaco. Muito tempo se passou até que aquele relógio da parede da sala ficou velho demais e não funcionava como antes.

Numa noite exatamente no mesmo horário que costumava trancar o portão, resolvi caminhar pelo quintal, querendo que tudo fosse diferente. Talvez precisasse mudar o meu jeito. Ser um pouco mais humano; mais pai. Então deixei todo ressentimento do lado de fora, o mau humor e a arrogância. Chamei por um e por outro, mas ninguém apareceu.

Nisso bati os olhos no relógio da sala e vi que também estava atrasado com minhas emoções. Chorei desesperado, pedindo que o tempo voltasse atrás, porém André e Lucas não estavam ali, pois já haviam crescido e caminhavam por estradas diferentes. Sei lá onde!

Estava só com seus pensamentos. Somente assim percebi que nossas crianças querem colo agora, porque amanhã já é futuro e poderá ser tarde demais.. Se eu pudesse voltar o tempo! Como fui tolo! Como fui mesquinho e egoísta. Agora estou sozinho...Sem ninguém.

        Enlacei o retrato de cada um deles junto ao peito e pela primeira vez senti saudade. Se pudesse, desejaria começar tudo outra vez, para sentir de perto a infância me sorrir em sinal de recomeço! 

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