BONECA VIVA
D |
esde que Simone se conhece por gente o
seu pedido é uma ordem e qualquer desejo, vira Lei. O que Simone não pede
sorrindo que dona Janete não faz chorando, hein? É uma menina rica, vaidosa e
poderosa.
Acredita que o mundo gira ao seu redor e que as pessoas têm a obrigação de lhe agradar. Brincar na rua de pega-pega com a molecada? Nem morta. Diz ser chique demais para amassar o vestido de cetim cor de rosa bebê por qualquer motivo bobo, mas a sua grande paixão é uma coleção de brinquedos empacotados e armazenados num quartinho no fundo do quintal.
As bonecas ficam
enfileiradas na prateleira de cima impecavelmente arrumadas com roupas de
festa. São bonecas de categoria que ficam ali a sua inteira disposição. Quando
ela não tem mais nada pra fazer, se entoca no quartinho para paquerar de longe
cada uma delas.
Nem respira perto
só de medo que possa despentear seus topetes repletos de laquê. Durante anos
aquelas bonecas continuaram no mesmo lugar, esperando um abraço que nunca
sentiram; um carinho que nunca tiveram e uma alegria que Simone jamais
conseguiria oferecer!
Então, serviam pra
quê? Para ocupar espaço nas prateleiras e na vidinha aguada daquela garota sem
graça. Sabia de cor e salteado o nome delas, o jeitinho de cada uma e
principalmente o preço.
— Michelly custou
cem reais... Letícia duzentos e Marry uma fortuna!
No meio de tantas
bonecas tinha uma em especial. Que charme! Era uma boneca importada, cheia de
badulaques e roupinhas da moda. Usava uma gargantilha com o seu nome gravado em
inglês: Sheron.
Ah, quanto
deslumbre! Sheron está ali plantada desde o ano passado e tinha um par de olhos
azuis cativantes, porém eram tristes demais! Permaneciam abertos em direção da
janela como se ela quisesse ir embora dali para bem longe.
Por que uma boneca
tão preciosa assim desejaria morar em outro lugar? Simplesmente porque se acha
inútil. Não têm amiguinhas, não sai da prateleira e não pode brincar com
ninguém.
Apenas servia de
enfeite e isto é muito chato para uma boneca como ela. Apesar de ser a
preferida de Simone, sentia-se desprezada; morta e sem vida. Não encontrou
sentido em continuar naquela monotonia e com o tempo a pequena Sheron começou a
ficar doente. Como assim??! Isto mesmo. Não parecia mais graciosa como antes.
Da noite pro dia perdeu o brilho e a beleza física. Estava estranha, com o
rostinho amarelado, quase esfarelando.
— Sheron está
horrível! – comentou.
A menina que
conhecia Sheron só com um olhar percebeu que estava acontecendo alguma coisa
diferente .Passou a fazer suas visitas diariamente, reparando com desespero o
definhar da pobre coitada. Nossaaaa! Sheron estava um caco. Não demorou muito
para que lhe caísse os cabelos e Simone teve um treco.
— Sheron, você tá
um defunto, querida!
Ah, assim era
demais! Sheron estava ridícula com dois fiapos de cabelo na cabeça; tornou-se
feia de dar dó e desta maneira estragava todo o visual da prateleira!
— Ufa, que triste
fim!
Simone resolveu
dar um destino naquele trapo velho antes que ela contaminasse o ambiente com o
seu baixo astral.
— Queridinha, o
seu rumo já está traçado.
Pobre Sheron,
teria que se conformar com o seu desfecho. Foi bom enquanto durou e agora os
tempos eram outros.
Imediatamente ordenou que a arrumadeira se
desfizesse daquele entulho amarrotado, jogando a boneca no lixo.
— Quero essa
boneca bem longe daqui. Suma com ela!- ordenou.
Enquanto dona Nair
levava a coitadinha embora, escutou o barulho da batida de um coração pulsando
no peito de plástico da boneca. Ela soltou um grito de medo, se benzeu
assustada e atirou o saco pela janela.
— Que assombração!
Esta boneca é um vodu! Cruz Credo.
Durante dias Sheron ficou largada no cantinho da rua, debaixo de chuva e de sol. Estava muito mais acabada que antes.
Foi então que uma
menina ali do subúrbio avistou Sheron e foi amor à primeira vista. Para ela,
era a boneca mais linda do mundo, e agora seria todinha sua! Sua companheira,
amiga e confidente.
Assim abraçou com
força os seus bracinhos de borracha.
— Ah, linda! Está
com frio, é?
Naquele momento
Sheron sorriu por dentro e sua beleza refletiu para fora. Não estava se
sentindo doente. Sentia-se amada! O calor do colo de Sofia lhe reviveu as cores
e estava mais viva que nunca.
— A partir de hoje
o seu nome é Aurora e vou cuidar de você.
Nisso saiu pulando
de alegria por ter encontrado aquela boneca tão linda e abandonada. Abriu a porta
do casebre chamando as irmãzinhas para brincar e logo formaram uma roda de
crianças, todas querendo acariciar o seu cabelo e ajeitar o vestidinho já
rasgado pelo tempo.
— Nunca tive uma
boneca tão bonita! – dizia Sofia.
— Vamos pedir para
a Vó Bastiana costurar um vestido novo para ela.
— Será a nossa
princesa! – dizia Betânia.
Na verdade somos felizes quando nos sentimos
capazes de fazer alguém feliz, e assim renascemos para o mundo, muito mais
bonitos e confiantes porque o amor é a força da vida.
Comentários
Postar um comentário