PARA AMAR E TOLERAR É SÓ COMEÇAR

 



  D

esde que Seu Leléu ficou viúvo, carente e desiludido da vida, desmanchou-se todo, achando mesmo que não valia a pena continuar a viver.

Nada mais tinha sentido e o negócio era pendurar as chuteiras de prontidão, esperando a morte chegar e bum!

     — Que venha logo, Dama de Preto! Quero conhecer de perto o paraíso prometido. Estou pronto, venha sem medo.

Ele continuava desolado com a barba sem fazer e dobrado num canto da cama com a peruca vermelha toda torta. Foi assim que Ivonete, sua filha mais nova, lhe encontrou numa tarde de domingo:

       — Ô pai, que absurdo! O senhor não pode mais viver assim. Bora pra minha casa! É uma ordem.

       Pronto, não deu outra; arrumou todos os seus apetrechos numa mala velha e fez questão que Seu Leléu fosse morar com ela, o marido e os meninos num casarão pomposo bem longe daquela maloca suja e repleta de cacarecos espalhados pelo chão.

         Foi uma ladainha daquelas, pois Seu Leléu dizia que não queria atrapalhar, ser um estorvo ou mudar a rotina da casa com suas manias de velho...

        —Me deixe aqui definhar em paz! Sou muito velho para dividir minhas manias com vocês.

        O que Ivonete não sabia era que ele não estava de brincadeira quando falou sobre “suas manias de velho”!

        —Bobagem, pai. A gente se vira! O senhor será super bem vindo em casa. Minha casa é a sua casa!

        —Então ta ! – resmungou. Não diga que não avisei...

    Pois bem, logo no primeiro dia já colocou as “manguinhas” de fora, fazendo uma Big careta ao ver toda a família grudada no chão da sala assistindo T.V.

            Esse povo não trabalha?!

            O que disse, papai?

            @#$%& nada!

    Passou em silêncio e foi rapidamente para o seu Ninho da Solidão, o famoso Cárcere da Saudade e  pendurou  na parede retratos antigos da falecida.

        — Fique bem quietinha aqui, Isabel. Não faça barulho.

     Embutiu os chinelos de couro debaixo da cama e empilhou os charutos na cabeceira, bem ao alcance dos dedos, só de medo que não pudesse alcançá-los na escuridão da madrugada.

    — Se alguém se atrever a mexer nos meus charutos, eu mato com um tiro de canhão! — resmungava sozinho.

Seu Leléu era uma figurinha carimbada. Pregou um cadeado gigante na porta e escreveu num papel de embrulhar o pão todas as suas exigências para que conseguisse viver na paz absoluta:

                                                     

                            ATENÇÃO SOLDADOS

             — Na segunda devem servir a sopa de lentilha com bacon torrados ao vapor. Detalhe: na cama;

                 — Nada de palavras chulas ou palavrões “cabeludos”;

                 — Chuveiro na temperatura morna;

                 — Meias e cuecas lavadas na mão;

            Ivonete até que entendia os chiliques do pai e tentou com muito custo segurar esta onda, mas com o passar dos dias o clima ferveu e ninguém aturava os desaforos de Seu Leléu, que já tinha diversos apelidos como o “O Fiscal Ensandecido”, “O Monstro da Peruca Vermelha”, “O Vigilante Rodoviário”...

               — Seu Leléu é um porre!

              — Que arrependimento! Se eu soubesse teria deixado longe bem daqui. Talvez no planeta Júpiter.

           Não teve outro jeito: o pessoal da casa começou a pegar pesado e exigiram que Ivonete tomasse uma atitude ou ficaria sozinha com aquela “Mala sem Alça”.

            —Você quem escolhe, Ivonete. Problema seu.

           De um lado estava toda a galera  e do outro o pobre do Seu Leléu, que com o passar do tempo estava ficando mais cricri e exigente:

 — Chega de blábláblá durante as refeições. Quietos,  bando de maritacas!  Nada de sapatos dentro de casa. Quero todos na soleira da porta um ao lado do outro. Que zumzumzum é este? Vamos cantar o Hino Nacional agora  Não estamos num circo e aqui não tem nenhum palhaço, compreenderam? Quem não estiver satisfeito, vaza!

Quanta ousadia!

— Esse velho não ta de brincadeira, Ivonete. Tome uma atitude. Seu pai é uma aberração da natureza.

Então começou a Guerra do Século e Seu Leléu que nunca foi bobo nem nada, percebeu que a sua batata estava assando e com muito medo de ser jogado para fora, como um trapo velho, resolveu mudar de estratégia.

— E agora? Preciso me reciclar urgente!

Precisava reagir e bem rápido antes que fizessem sua mudança na calada da noite sem dó ou piedade.

— Vou surpreender esse povo ignorante!

Até que uma coisa de louco aconteceu: Seu Leléu madrugou na cozinha, preparando um café da manhã no capricho, do tipo surpresa para os familiares queridos:

  — Bom dia, meus amores e amoras! O ovo morno é para o super genro.— sorria.—O bacon é para filha mais fofa do mundo.E o leite quente com açúcar mascavo? Ora para ambos!

Todos ficaram pasmos, imobilizados diante de tanta meiguice. Será que Seu Leléu tinha pirado de vez?

         — A panqueca é para as crianças maravilhosas!—dançava tarantela  enquanto servia.—Aqui não tem miséria.

Apanhou rapidamente a vassoura  com uma mão e com a outra sacudiu o tapete da sala,  aguou as plantas do jardim e colocou o lixo na rua. Ninguém acreditou em tamanho milagre, enxergando naquele homem o desespero em pessoa.

  — Amanhã acordarei mais cedo para “faxinar” a casa. Por onde vocês querem que eu comece? Sala, cozinha ou varanda?  Vocês mandam. É só falar...

  Todos ficaram em silêncio e observaram  de “camarote” o desempenho brilhante de Seu Leléu, que não tinha mais idade para tamanho sofrimento.

Sem dizer uma palavra foram todos ao seu encontro, lhe estendendo os braços e lhe proporcionando uma nova chance de participar da família, no dia a dia da casa, com muito carinho, diálogo e tolerância.

    — Não precisa tanto, Seu Leléu.Relaxa !

            — Me de um abraço aqui, pai.

  —Tadinho do vô! Fique em paz!

Então Seu Leléu colocou pra fora um choro de criança, forte, sentido e carente. Estava pronto a recomeçar, aprendendo com esses mistérios do relacionamento humano, que para viver bem e ser feliz, é preciso apenas um pouquinho de boa vontade. Porque amar e tolerar, é só começar!


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