Mistérios do amor
Desde mocinha Eneida era considerada uma enciclopédia ambulante e pronta pra desvendar qualquer mistério da vida. Que mistério, o quê? Para Eneida nunca existiu nada que não soubesse o verdadeiro motivo. E o que não sabia, inventada, na maior lorota do mundo, deixando aquela dúvida no ar: “será?”
Eneida não se permitia “escorregar” no
tomate, achando que era dona exclusiva da verdade.
A mesma verdade que buscava em cada livro,
perseguindo a perfeição, por não se aceitar imperfeita também.
Era uma crica! Passava horas pensando sobre a
morte da bezerra, a cor branca do cavalo de Napolelão, a peruca do rei careca
ou quem ajudou a colocar terra no mundo.
Por que que não fugiu como os outros? Medo de
envelhecer sozinho. E se casaram assim que Eneida concluiu o magistério,
realizando o seu grande sonho de ser a professorinha sabe-tudo.
Com o tempo passou a dar aulas o dia todo,
chegando em casa moída de tanto cansaço, mas totalmente realizada. E entre ela
e os alunos tinha um pequeno obstáculo, um trono dourado, que não permitia que
se aproximassem mais. E Adamastor, era feliz? O que aquele pobre homem entendia
de felicidade? Não abria o bico para nada, querendo mesmo que Eneida reinasse
em paz. Que descobrisse todos os mistérios do mundo, desde que lhe desse um
filho. Um filho? Eneida dizia não ter tempo para essa bobagem.
Então Adamastor sugeriu que adotassem uma
criança; ele cuidaria de tudo e Eneida continuaria a ministrar as suas aulas,
como sempre fez. Ela xingou, teve chiliques, fez drama... e depois concordou,
apenas para não contrariar Adamastor, mas trato é trato. Que Adamastor se
virasse do avesso para criar. Que fosse pai, mãe, cozinheiro e faxineiro ao
mesmo tempo. E o pequeno Elias foi adotado já com seis aninhos; sacudido e
crescido, apenas para ganhar tempo. Eneida não dava a mínima atenção para o
garoto, preferindo a companhia dos livros e Elias se desdobrava em dois para
que fosse notado, percebido ou tocado pela mãe. Sentia muita vontade em colocar
fogo nos livros de Eneida, apenas para dizer que existia, porém existem ensinamentos
nesta vida que não encontramos em
nenhum manual e só não conseguimos enxergar porque
achamos que já sabemos o suficiente e pronto.
Elias pouco ficava com a mãe e mesmo que
Adamastor tentasse fazer de tudo para se superar, a saudades era imensa.
Até que numa tarde chuvosa encontrou no meio
do mato uma caixa de madeira com quatro gatinhos abandonados. E agora, o que
fazer? Deixar que morressem de fome e frio? Elias não pensou duas vezes; às
escondidas, preparou uma caminha bem aconchegante para os filhotes. Logo já
estavam com os olhos abertos, brincando de lá para cá com a barriguinha cheia,
graças a dedicação do pequeno Elias.
Não demorou muito para que Eneida descobrisse
aquele pacote surpresa, escondido no fundo do quintal. Quase pirou. Ela fez um
discurso enorme, mandando Elias dar um jeito nos bichanos.
Agora fiscalizaria todos os passos de Elias,
só de butuca nas suas barbaridades. E ele começou a sumir, depois do café da
manhã, do almoço, do jantar... onde estaria aquele moleque atrevido, hein?
Eneida não queria engolir aquele sapo.
Esperou que o pirralho tomasse o lanche, fingindo estar ocupada. Mas quando ele
colocou dentro dos bolsos o miolinho do pão, matou a charada.
Elias deu duas goladas no leite e saiu de
fininho, com a caneca na mão, sem perceber que a mãe estava na sua cola. Quase
caiu duro ao dar de cara com a cara feia de Eneida.
- Por que ainda teima em me desobedecer? Não quero lhe dar uma surra, mas quero que aprenda que os gatos são sujos e transmitem doenças. Qualquer um sabe, Elias. É só ler nos livros.
Então Elias sentou-se ao seu lado, dizendo
que acreditava nos ensinamentos da mãe, mas com certeza em nenhum dos seus
livros estaria escrito sobre o grande amor que sentia por eles. E só dar
comida, não bastava. Queria estar ao lado de cada um deles para lhes fazer
companhia, dar carinho e proteção. Isto tudo ele não aprendeu com ninguém.
Aprendeu com a vida, que havia lhe ensinado a ser solidário, amigo e generoso.
Talvez naquele momento Eneida lhe daria uma
“coça”, mas não conseguiu. Apenas enxugou as lágrimas que escorriam pela face,
acalentando o pequeno Elias em seu colo, emocionada e agradecida por ter
aprendido com ele a ouvir a voz do coração. Porque ninguém é tão sábio que não
possa aprender com uma criança os mistérios do amor.
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