SOPINHA DAS SEIS

 



                                   

            Vitinho e dona Martinha era o casal mais famoso da rua por suas brigas ao ar livre para toda a galera ver de perto quem mandava no “pedaço”.

       Ela nem se lembrava do reumatismo e  fazia verdadeiras acrobacias com o cabo de vassoura  que passavam raspando  no topete  engomado do “maridão”.

Na verdade não tinham motivos aparentes, pois Vitinho era um pobre homem de sessenta e nove anos que não abria a boca para nada  e dona Martinha parecia tão dócil com sua expressão de avozinha caridosa, muito fofa e prestativa, disfarçando toda a ira que guardava dentro de si.

—Bom dia, minha Rainha.

—Bom dia, amor.

—Como passou o dia, “vidinha”?

— Estou ótima. Sem estresse. Digo e repito: até o momento.

Só que entre eles o bicho “pegava” de tal maneira que até o olhar passivo de Vitinho lhe irritava profundamente:

- Esse olhar de “songo mongo” me irrita!

Dizia que ele era preguiçoso e que nunca gostou de colocar o lixo na rua. Depois não aguava as plantas do quintal e ainda se fazia de surdo todas as vezes que precisava comprar leite na padaria, mas para jogar dominó no meio da praça era uma “belezura”.

—Picareta! És um falso, Vitinho.

Quando o primo Bidú batia palmas no portão ele se alinhava todo, vestia a camisa de cetim e rapidamente colocava o chapéu para sair na ponta dos pés.

Ah, este era o pior motivo de todos, capaz de deixar a nobre senhora ensandecida.

Dona Martinha bufava de raiva porque o serviço da casa sempre sobrava para ela e já não tinha saúde para ficar dando brilho nos móveis até criar calos nas mãos.

—Vitinho, seu  folgado!

Queria ver o dia que ficasse doente... Aí sim seria tarde demais para as suas lamúrias.

        —Eu não sou eterna, Vitinho. Acorda pra cuspir!  

Aquele “fanfarrão” só aparecia no finalzinho da tarde  justo no horário da sopa das seis, morto de fome e querendo beliscar o caldo com o miolinho do pão. Este tipo de “ousadia” deixava dona Martinha louca da vida , resmungando com as panelas.

—Estou com Vitinho pelas tampas!

A vizinhança morria de rir com seus gritos neuróticos, desafiando Vitinho para uma briga.

        —Vem quente que estou fervendo! 

Ele não tinha vergonha em ficar plantado num banco da praça, jogando conversa fora sem ter ao menos cumprido suas obrigações domésticas e blábláblá!

Depois ela se fazia de vítima, com o coração partido, dizendo que ele não era mais o mesmo da época da formatura:

         — Como você mudou, Vitinho!— enxugava as lágrimas de sangue— Prefere "sassaricar" por aí com o primo picareta só de butuca nas mocinhas assanhadas que passeiam pela praça, né?

Nisso Vitinho fingia não ouvir e  como que se nada tivesse acontecendo, se trancando no quarto a sete chaves.

Só que a sopa das seis estava com os dias contados e, se quisesse uma, que fosse preparar. Dona Martinha prometeu aos pés da Santa que passaria a pão e água, mas Vitinho também.

Não teria mais um pingo de dó. Pronto, estava armada a encrenca. Cada um foi dormir em camas separadas e sem muita prosa. Ele ligou o radinho do quarto para ouvir as notícias enquanto ela fazia crochê embaixo das cobertas, se fingindo de morta. Ele roncava alto e ela tossia.

Ele pigarreava e ela cantarolava, espiando por rabo de olho. E assim corria tudo bem até que numa manhã de domingo, daquelas que Vitinho estaria de prontidão a espera do primo assanhado, silêncio total.

 — O que será que esse inútil  tá aprontando?

Dona Martinha fez barulho com os pratos, gritou com o passarinho e fez de tudo para que o companheiro acordasse, mesmo que fosse resmungando, como fazia todos os dias. Mas desta vez, não.

—Sai pra lá, Totó . —gritava para chamar a atenção.

—Conversa com a mamãe, gatinha linda! Miauuuuu!

Ela caminhou até a porta do quarto, esticando o pescoço apenas para espiar melhor. Foi quando pode constatar a agonia de Vitinho que gemia de dor.

—Aiiiiiiii,aiiii,aiiiiiiiiiiiiiiiiii...UiiIiIiiIiIII!

Começou a ficar desesperada, andando de lá pra cá  feito louca. Só que era mais um golpe de Vitinho, que estava em súplicas. Ela não se conteve e escancarou a porta, perguntando:

         — O que houve, Vitinho? Onde dói? Desembucha.

Ele explicava que era uma dor horrível, que vinha de trás para frente, fazendo um bolo aqui e ali... e ela gemia junto, como que se sentisse o mesmo.

        —É o peito. Não, acho que é o coração, minha boneca.

—Vai mais para o canto, meu querido. Vou deitar com você.

—Me dê um beijo, glamorosa. Os seus lábios são como almofadinhas de nuvens e continuam  doces como favos como a primeira vez que te beijei lá no pátio da escola.

—Vou te fazer um chamego, meu dengo!

Assim permaneceram durante horas até que a vizinhança estranhou o sumiço do casal e meteram o pé no portão no maior alvoroço.

         — O que será que aconteceu? Caramba, que silêncio macabro. Não teve briga e nem xororô...Esquisito!

     Eles vasculharam  os cômodos da casa, chamando por um e por outro.

Quando conseguiram entrar no quarto encontraram os dois abraçadinhos na cama, chorando baixinho com muito medo. Medo de se perderem um do outro, porque eram companheiros, namorados e cúmplices de um cotidiano maluco, mas que somente os dois conseguiam compreender.

Vitinho pediu um abraço e ela lhe ofereceu um café bem quente, do jeitinho que ele mais gostava e tudo foi se ajeitando.

Logo mais teria o jogo de dominó na praça, as brigas de dona Martinha, o cabo de vassoura voando longe e todo um romance que começou há mais de quarenta anos, onde apenas o amor verdadeiro consegue unir diversas emoções, fazendo de Vitinho e dona Martinha um casal cada vez mais apaixonado.E com direito a sopinha das seis, é claro.

 

 

 

 

 

         

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