Aposentadoria Feliz ok
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Se você pensa que Matilde teve do bom e do melhor quando ainda era uma,enganou-se redondamente. Vinda de uma família simples,ela aprendeu logo cedo a vender o próprio peixe e guardava suas economias numa maleta velha.
Era pau para toda obra! Com seu olho vivo,
aliás, vivíssimo, enxergava longe novas oportunidades para conseguir um pouco
de conforto.Dizia com a boca cheia que nunca passaria fome porque vontade de
trabalhar e progredir na vida, ela tinha para dar e
vender.Principalmente vender.
Foi assim que Matilde levou sua família
nas costas durante anos.Por ser a filha mais velha e criada sem o pai, sentia-se responsável por cada um deles.
Não tinha tempo para bater pernas pela rua e ficar de trelelê no portão, só de boa ou curtir um namorado.Que
namorado, que nada!
Aquela mulher era um trator desgovernado,prestes a explodir.Saia logo cedo para
o escritório e sem olhar para trás matutava um jeito de se dar bem na vida. Não
era fácil sustentar um batalhão de gente
chupim que sugava sua alma sem piedade.
Tinha que ter o dinheiro para o cinema de Totoca, para a sandália
de Luzia, para o cigarro do João, para o acampamento de Lindomar...Para ela o
que restava, hein? As contas atrasadas.Definhava-se aos poucos em prol da comunidade carente, não podia dar-se ao luxo nem de pensar em si mesma.
—Matilde não pode ter um namorado porque precisa economizar para a
faculdade de Miltinho e os livros lhe custavam os olhos da cara— explicava
Luzia.
—Matilde também não pode curtir a vida porque precisa economizar
para o futuro de Décinho — dizia Totoca.
Então ela fez todos os cálculos e seus
prazeres poderiam ficar para depois do casamento de Judite.Somente assim seria
uma mulher livre, leve e solta! Talvez se casasse com o primeiro namorado ou
então ficasse solteirona só curtindo os prazeres da vida.Sei lá. Tudo poderia
acontecer.
Durante muito tempo foi uma guerreira e
matava um leão por dia, apenas para conseguir sobreviver com fé e coragem.Eles
não lhe negavam palavras de incentivo, esborrachados no sofá da sala, reclamando que o
ventilador tinha pifado e que a carne tinha gosto de sapato velho.
—Matilde, você já foi melhor, né? Frango seco, batata murcha e
laranja podre...— resmungavam.
Pobre Matilde! Não se desperdiça uma
vida inteira pagando um mico tão caro assim. Não pode dar o que não tem.E ela
não tinha amor próprio! Não se enxergava no espelho e a galera queria
mais.Queriam que explodisse de tanto trabalhar!
Todas as contas estavam pagas, o
consórcio do carro estava em dia e a casa estava linda, com móveis novos e tapetes importados, porém o seu coração continuava um
cômodo vazio.Até que percebeu que não poderia continuar sendo o burro de carga
da família.Estava cansada e talvez, quem sabe, merecesse uma aposentadoria.
Isto mesmo, ela precisava repousar os
pés sobre as almofadas e se dar ao luxo de assistir a Sessão da Tarde com uma tigela de pipocas no colo.
—Eu mereço. Pronto! Acabou a farra dessa galera. Acabou a marmotagem! - Decidiu que queria ser
feliz!
Matilde não comentou seus planos com
ninguém.Faria uma surpresa para todos, aparecendo em casa no meio do dia só
para avisar que dali por diante estava aposentada para sempre.
—Boa tarde, meu povo. Amores,eu tenho uma novidade pra contar...
O povo nem se mexeu conversando entre
si.
—Vou me aposentar.— desabafou.
Que desaforo! Quase comeram seu fígado cru.
—O quê? Cê tálouca? Muita folga, né?
-- Quem pagaria a prestação da geladeira?! - esperneavam.
—Quem compraria o terreninho em Santos?– choramingavam
— Nos poupem! Você pirou! Só pode estar louca.Olha, subiu até a minha pressão arterial.
Ela não quis saber dos detalhes.
—Me esqueçam. Fui! Descansarei em paz.
A partir daquele momento, era uma mulher sem compromissos com
horário, patrão ou livro de ponto.Tinha milhões de minutos para curtir a vida!
Nos primeiros dias, sentiu um tremendo alívio e desfilava
de pijama pelos cantos. Ele era presença indesejada pelos corredores da mesma casa que dividia com
os irmãos, enquanto eles resmungavam de raiva:
—Ah, Matilde implicante! Velha chata.
Ela passou a fiscalizar a obra do
vizinho e o caminhão de gás.
— O motorista está muito relaxado hoje. Fez uma manobra perigosa.Vou
ligar no disque-denúncia.
Fizeram de tudo para desovar aquele
entulho num canto qualquer, mas Matilde controlava até a posição do sol.
—Rápido com este banho! Quem quiser mistura, que frite um ovo!
Bora varrer o quintal.
Matilde não estava aposentada.Estava
morta, por dentro e principalmente por fora.Não tinha o brilho da vida e isso custou muito caro para a sua família,que já estava arrancando os cabelos.
Totoca não ia mais para o cinema,porque não tinha dinheiro para o
ingresso.Luzia também não saia de casa e João parou de fumar.Nisso, Matilde percebeu que a marcação estava
cerrada em cima dela e que o mundo continuava girando do portão para fora.
Agora era a vez daquela quadrilha de picaretas
colocar a mão na massa,porque os bailes da vida estavam à sua espera.Cortou todas as verbas
extras. Se não fosse Miltinho trabalhar no Açougue do Antero e Lorraine na Imobiliária do Messias, a casa teria ido à falência.
Matilde tinha esse direito e a sua liberdade só dependia
de uma renovação íntima.Ela criou coragem e voltou a ser uma mulher ativa,
construindo a sua própria felicidade. Passou a usar sua energia para a ginástica, para as amigas do curso de inglês e para as
festinhas que não faltavam em sua agenda.
—Matilde está renovada. Como mudou! Vive saltitante e acho que tá
de namorico com o Timóteo da quitanda. – diziam as más línguas.
Matilde transformou-se numa mulher bonita, saudável e feliz.Acima de tudo, capaz de curtir todas as oportunidades
da vida como uma menininha travessa à procura de novas emoções.Cantarolava
pelos cantos, passava perfume, contava piadas e curtia a vida como nunca.
E quem pagava a conta? Toda a família, que resolveu fazer uma vaquinha para Matilde se divertir ao máximo, sempre
alegre, satisfeita e bem longe de casa só para não perturbar o sossego de cada
um.
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